Manejo Clínico de um Primeiro Molar Superior com Reabsorção Cervical Invasiva e Pulpite Inflamatória Irreversível.

  Caso clínico, 03 de Mar de 2017

Resumo

Introdução

A reabsorção dental cervical externa é caracterizada por uma perda irreversível de tecido dentinário devido à ação de odontoclastos (Patel et al 2007). Ela pode também ser chamada de reabsorção cervical invasiva (RCI). Tem caráter inflamatório dos tecidos de suporte do dente. Inicialmente não tem nenhum envolvimento pulpar (Mavridou AM, Pyka G, Kerckhofs G, et al 2016). Geralmente, este tipo de reabsorção se inicia imediatamente abaixo do epitélio de união, na região cervical do dente. Enquanto não ocorre invasão bacteriana na cavidade pulpar, a polpa tem a sua vitalidade mantida. Consequentemente, a camada de pré-dentina estará presente. A RCI não avança para dentro da cavidade pulpar possivelmente devido à presença de fatores inibitórios presentes nesta camada pré-dentinária (Wedenberg 1987, Mavridou et al. 2016, Mavridou AM, Pyka G, Kerckhofs G, et al 2016). Seu diagnóstico e tratamento nem sempre são fáceis e o prognóstico é dependente da localização e grau de severidade da lesão quando diagnosticada.

Vários fatores etiológicos podem estar envolvidos na RCI. Entre eles pode-se citar:

- Físicos: traumatismo dental, procedimentos cirúrgicos, movimentações ortodônticas, raspagens periodontais e bruxismo (Heithersay 1999).

- Químicos: clareadores internos, especialmente nos casos de aquecimento e alta concentrações de peróxidos de hidrogênio (Harrington & Natkin 1979, Cvek & Lindvall 1985, Schroeder & Scherle 1988, Gold & Hasselgren 1992, Neuvald and Consolaro 2000).

- Variação anatômica: o tipo de junção amelo-cementária parece ter um papel fundamental na reabsorção cervical externa. Em 10% dos dentes, não existe a justaposição do cemento ao esmalte (Schroeder & Scherle 1988). Assim sendo, uma área de dentina permanece desnuda de cemento ou esmalte (Cvek & Lindvall 1985, Neuvald and Consolaro 2000). Esta exposição dentinária é um fator de risco para o desenvolvimento de uma RCI (Neuvald and Consolaro 2000). 

Nos casos em que a junção amelo-cementária não é contínua, agentes irritantes físicos e/ou químicos podem causar um dano ao osso e à dentina. Esta agressão pode levar à alterações bioquímicas nos tecidos afetados dando início à formação de células gigantes multinucleadas. Estas células são células clásticas. Nestas situações clínicas, elas podem atuar reabsorvendo a dentina. No processo reabsortivo estão também presentes monócitos e macrógagos além de complexos eventos enzimáticos e hormonais.

 A reabsorção cervical se inicia na superfície externa da raiz e caminha em direção à polpa. Entretanto, quando esta ainda apresenta vitalidade, a camada de pré-dentina é mantida e a RCI não invade a cavidade pulpar. A pré-dentina, que é um tecido não mineralizado, muda a direção de progressão da reabsorção fazendo com esta se estabeleça circunferencialmente à cavidade pulpar (FIGURA 5, FIGURA 6, FIGURA 7, FIGURA 8).

O diagnóstico da RCI pode ser realizado por exame clínico quando esta encontra-se em estágio mais avançado permitindo a sua visualização direta. Clinicamente, no início do processo, o dente apresenta-se assintomático uma vez que nenhuma alteração fisiopatológica pulpar está envolvida. Nestes casos o diagnóstico por imagem é o método mais efetivo. Por este motivo, nas fases iniciais o diagnóstico clínico visual direto não é possível. Exames imaginológicos como radiografias periapicais e/ou tomografias são métodos eficientes de diagnóstico. Entre estes, a tomografia de feixe cônico é mais precisa do que a radiografia periapical (Patel et al 2016, Vaz de Souza D et al 2017).

O tratamento das RCIs tem como objetivo proteger a dentina afetada de sua exposição ao sistema imunológico do paciente. Para tanto, está indicado o tratamento de limpeza da área afetada e restauração da cavidade com material biocompatível. Estas áreas, por estarem em contato direto com fluídos tissulares e salivares, são úmidas e também irregulares devido a característica destrutiva do processo reabsortivo. Assim sendo, o material de escolha para o fechamento desta cavidade, além de ser biocompativel, deve ser capaz de preencher cavidade s irregulares e ter bom comportamento físico-químico em ambiente úmido. 

Ao longo da história da odontologia, vários materiais como resinas, amálgama, ionômero de vidro modificados por resina, hidroxiapatita e cimentos endodônticos foram utilizados para esta finalidade. Entretanto, nenhum destes apresentou as características e resultados desejáveis. A única classe de materiais que possuem as características desejáveis para esta finalidade é a classe dos biocerâmicos. Entre os biocerâmicos, o MTA é o material mais utilizado e com a maior comprovação científica de seus resultados (Pitt Ford et al 1996, Torabinejad & Parirokh M 2010, Parirokh M & Torabinejad 2010).

Caso clínico

Paciente do gênero feminino, 52 anos de idade, ASA I, compareceu ao consultório com queixa de dor espontânea exacerbada com alimentos quentes e gelados na maxila direita. No exame clínico, o dente 16 respondeu aos testes térmicos com dor de alta intensidade, latejante e com demora para cessar (FIGURA 1). Não apresentou respostas positivas aos testes de percussão lateral e vertical, tão pouco à palpação apical. O diagnóstico clínico foi de pulpite irreversível sintomática com periápice normal. Além disso, no exame radiográfico foi visualizada uma imagem radiolúcida envolvendo a região cervical e coronária do dente 16 levando à suspeita de uma Reabsorção Invasiva Cervical (FIGURA 2, FIGURA 3, FIGURA 4). Com a intenção de confirmação diagnóstica e mensuração da extensão da lesão, foi realizada uma tomografia computadorizada de feixe cônico.

Na tomografia foi possível observar a extensão tridimensional da RIC ao redor da cavidade pulpar. Conforme descrito anteriormente, a RIC não invade a cavidade pulpar quando a polpa encontra-se viva devido à presença da camada de pré-dentina. Esta característica imaginológica está presente nos casos de reabsorções dentais externas onde a polpa ainda encontra-se viva com consequente preservação da camada não mineralizada de pré-dentina (FIGURA 5, FIGURA 6, FIGURA 7, FIGURA 8).

Devido ao diagnóstico pulpar, o tratamento endodôntico foi realizado. Todavia uma abordagem complementar foi necessária na região da reabsorção (FIGURA 9, FIGURA 10, FIGURA 11). A curvatura acentuada da raiz mesial levou à seleção de um instrumento reciprocante de níquel titânio com controle de memória de forma (Reciproc Blue - VDW) para o preparo mecânico (FIGURA 3). 

Após o acesso à câmara pulpar, 5ml de Hipoclorito de Sódio foram utilizados para irrigação inicial (FIGURA 12, FIGURA 13, FIGURA 14). Logo após, um instrumento Reciproc Blue 25 foi progressivamente introduzido em cada um dos canais, em ciclos de 3 pequenos movimentos de entrada e saída dos canais seguidos da irrigação de 3 ml de Hipoclorito entre cada ciclo, até que atingissem 2/3 do comprimento radiográfico do dente. Neste momento foi estabelecido o comprimento real de trabalho através do uso de um localizador foraminal eletrônico. Na sequência, o instrumento Reciproc Blue 25 foi levado até o comprimento de trabalho. Com um instrumento Reciproc Blue 40, aumentou-se o diâmetro dos preparos apicais (FIGURA 15, FIGURA 16, FIGURA 18). Devido ao controle de memória de forma das limas Reciproc Blue, foi possível realizar o preparo apical da raiz mesio vestibular com curvatura acentuada, mesmo com um instrumento de diâmetro apical 40 e conicidade 5%. 

O protocolo de irrigação, de 3 ml de solução por canal a cada 3 movimentos de entrada e saída do instrumento reciprocante, foi mantido até o final do preparo. Após a finalização do preparo químico/mecânico dos canais, foi realizada a irrigação do mesmo com EDTA 17% associado à irrigação passiva ultrassônica em 3 ciclos de 20 segundos por ciclo em cada canal. Os canais foram então novamente irrigados com Hipoclorito de Sódio à 2.5%.

 Para a obturação endodôntica por técnica de compactação vertical à frio, foram selecionados o cimento MTA Fillapex (Angelus - Londrina Brasil) e cones de guta percha pré-calibrados. 

Na região da reabsorção optou-se por uma abordagem seladora intra-coronária (não cirúrgica). Esta opção foi devida à pequena extensão da área de comunicação entre a reabsorção e a superfície dental externa (FIGURA 12, FIGURA 13, FIGURA 17). Para o selamento da área de reabsorção inclusive da comunicação entre a superfície externa/ interna, o material de escolha foi o MTA-HP e não o MTA convencional. O MTA convencional, por conter como radiopacificador o Óxido de Bismuto, pode levar à um escurecimento da coroa do dente quando utilizado próximo à região cervical ou na coroa dental. O Óxido de Bismuto pode reagir com o colágeno dentinário acarretando em um acinzentamento da estrutura dental (Marciano MA et al 2014). Esta alteração cromática também pode ocorrer devido à interação entre o Óxido de Bismuto e o Hipoclorito de Sódio (Camilleri et al 2014, Marciano MA et al 2015). Desta maneira, o uso de materiais biocerâmicos contendo o Óxido de Bismuto como radiopacificador deve ser evitado. 

Com a preocupação na preservação da estética dos casos clínicos tratados com materiais biocerâmicos, novas formulações destes materiais vêm sendo propostas pela indústria. Como exemplo, o MTA HP Angelus tem como radiopacificador o Tungstato de Cálcio. Esta nova formulação não leva à alterações cromáticas na estrutura dental (Marciano Ma et al 2014). Assim sendo, o MTA HP pode ser utilizado em áreas próximas à coroa dos dentes sem o comprometimento cromático ao dente tratado. Além disso, o acréscimo de um plastificante orgânico ao componente líquido deste novo material, melhorou significantemente o seu manejo clínico. Como este caso clínico envolve a colocação do material biocerâmico nas proximidades da área cervical coronária do dente 16, optou-se pelo MTA HP para preservar a cor original do dente. No controle clínico de 8 meses é possível observar a manutenção da cor original do dente 16 (FIGURA 21, FIGURA 22) bem como a normalidade dos tecidos periapicais (FIGURA 23, FIGURA 24).

Conclusão

As reabsorções cervicais invasivas são patologias de caráter imunológico. Quando diagnosticadas precocemente, onde a extensão da destruição dental ainda é pequena e de fácil acesso, o prognóstico é favorável. Os materiais reparadores biocerâmicos são indicados para selar a comunicação entre o endodonto e a superfície externa da raiz. Como as reabsorções cervicais invasivas envolvem áreas estéticas, materiais biocerâmicos contendo Óxido de Bismuto devem ser evitados por causarem alteração cromática na coroa do dente envolvido. Portanto, os MTAs tradicionais não estão indicados. Já novas formulações de MTA como o MTA-HP, não possuem Óxido de Bismuto. Esta característica, não leva a alteração da cor do dente e portanto é o material mais indicado para o selamento destas áreas de reabsorção. 

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Autor

Prof. Dr. Leandro A. P. Pereira

Professor de Endodontia da Faculdade de Odontologia São Leopoldo Mandic Mestre e Doutor em Farmacologia, Anestesiologia e Terapêutica Medicamentosa UNICAMP Especialista em Endodontia - Microscopia Operatória - Sedação Inalatória

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